DOS CARNAVAIS QUE ME LEMBRO
- Ana Cláudia dos Santos
- 10 de mar. de 2017
- 3 min de leitura

Para as críticas que me proponho a fazer sobre o carnaval, preciso começar me posicionando. Sou filha da D. Regina, que é negra de pele escura. Agora aposentada, ela trabalhou a vida inteira como empregada doméstica para brancos. Apesar de eu estudar nos Estados Unidos com uma bolsa integral, moramos no Cipó, Embu-Guaçu (salve, quebrada!), periferia de São Paulo, num morro onde todas as casas estão no cai-mas-num-cai. Um dos aspectos mais interessantes sobre as periferias é que se tornaram os novos quartos de despejo da sociedade: foram pensadas para que pobres e pretos continuem a ser explorados nas grandes cidades, mas sem a inconveniência de serem vistos. Lá eles podem ser abandonados, mortos, esquecidos sem incomodar ninguém. Lá mal tem escola, que dirá escola de samba. Não precisa nem levantar muro para esconder os moradores porque as duas horas que leva para chegar lá de metrô, trem e busão lotados já fazem o trabalho.
Partindo desse contexto, carnaval significava coisas muito específicas na seguinte ordem de importância:
Mini-férias!
Festa na rua, passeio com os amigos e pegação.
Uns desfiles bonitos que passam na TV com uma música meio repetitiva que minha mãe adora e uns temas da hora.
Vamos começar pelo fim. Carnaval tem muitos significados diferentes para pessoas diferentes e eu respeito todos eles desde que não promovam opressão de grupos marginalizados. E para mim, a criação de uma comunidade por meio da preparação de um desfile, a ênfase em temas importantes, não apagam todas as violências que acontecem durante esse processo e seus resultados: da exploração e assassinato de animais para a confecção de fantasias, à hyper-sexualização, exotização e comercialização da imagem da mulher negra, passando à atribuição de tarefas com base em heteronormatividade e à clara exclusão baseada em raça e classe daqueles que podem participar (e como podem participar) e daqueles que só podem assistir. Para piorar, é televisionado por uma emissora claramente desonesta, racista, classista, ableista, gordofóbica, homofóbica e manipuladora. A relacão entre carnaval e essa emissora é consideravelmente maior do que entre o carnaval e as periferias paulistanas. Chega a ser curioso que a alcunha "fabrica de sonhos" seja divulgada na tv de forma tão acurada. Para muitos nunca vai passar disso. Outra coisa que me incomoda bastante e a espetacularizacão de histórias de dor, sofrimento, resistência, entre outros elementos que são tão importantes para a cultura negra de forma mais contemplativa que reflexiva.
As festas na rua é que tornaram o carnaval numa época divertida para mim e meus amigos exatamente porque a proximidade máxima que tínhamos com o carnaval comodificado, tipo exportação, se resumia aos sprays que alguém mais abastado comprava e às músicas (geralmente axé) que tocavam nas ruas, com sorte, ao vivo, por bandas distantes da fama, no centro da cidade. Carnaval era para todos. Parece que esse foi o carnaval apropriado pelo famoso carnaval baiano onde a exclusão é feita por meio da delimitação de espaços para os que têm mais.

Idealizado como festa religiosa pagã, o carnaval era o dia em que pobres e negros podiam sair às ruas sem serem (muito) incomodados. É natural que desembocasse em uma festa que é reconhecidamente negra e o que fizemos dessa festa nas ruas é realmente admirável. Voltar ao passado não é uma opção, já que o cunho religioso, o racismo e o sexismo sempre estiveram na estrutura da festa. Não seria uma questão de retomar os carnavais, mas de reimaginá-los. E se eu pudesse recriar o carnaval, seria como festa democrática de celebração à negritude. Onde samba, ambos música e dança, são experenciados e não objetos voyeurísticos. Onde idosos se divertem tanto quanto adultos e crianças, onde conversas sobre possibilidades, violências e recriação são esperadas e possíveis. Onde sexualidade não é exoticizada e se discute o impacto e intenções de se mostrar corpos nus (de variadas idades, gêneros e capacidades) com o objetivo de um dia alcançarmos a proposta de Audre Lorde do erótico como forma de empoderamento. É muito claro que um carnaval assim só pode existir fora do sistema capitalista. Enquanto nada acontece, preferiria, se pudesse, me divertir com meus amigos nas ruas. Opção impossível tanto pela distância quanto pelo corte de verba de várias prefeituras para os carnavais populares.