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CRÔNICA PARA QUEM NÃO DEIXA O SAMBA MORRER


Ou...

Crônica para quem vai ficar no meio do povo

Eu não pulo carnaval. Nunca pulei carnaval. Eu viajei, me retirei ou me tranquei em casa em todos os carnavais de que me lembro. Há também os que eu não lembro. E de tentar me lembrar desses últimos, acabo de perceber que menti: já pulei carnaval, sim.

Eu tinha 4 ou 6 anos, estava em Barra Nova, Alagoas, na casa de praia do meu tio materno. Sei disso porque tenho uma foto com meu tio, minha mãe e uma coleguinha de ocasião chamada Bela. Lembro que a Bela era realmente muito bonita (percebam que evitei o trocadilho). Nessa época, eu achava que meninas bonitas eram as que não se pareciam comigo: as brancas de cabelo liso e olhos claros. O que me aproximava da Bela sutilmente era o cabelo. O dela também era cacheado, mas era longo e loiro, e se eu conseguisse reconstruir a cena da foto, diria que ela jogava vaidosa o cabelo todo para trás, além de tirar e recolocar muitas vezes a tiara prateada que compunha sua fantasia.

Ah, sim...tinha a fantasia...e isso nos diferenciava ainda mais. Minha mãe tinha começado a ir à igreja nessa época e nunca colocaria uma roupa como aquela em mim. Isso era uma pena, porque até os 12 anos tudo que eu mais queria era pôr uma daquelas fantasias com lantejoulas que consistiam num top tomara que caia – que sempre caía – e numa saia curta de babados e bem rodada. Que fantasia era aquela? Não sei, mas fazia sucesso nos anos 90. Hoje faria sucesso no tribunal de menores, ou em páginas feministas: sexualização da infância. Minha mãe, no fim, estava certa.

Mas no fundo, e às vezes não tão no fundo, eu não gostava disso. Queria a fantasia com tomara que caia que caía; depois que meus seios cresceram – e aí que nunca mais mesmo poderia usar um tomara que caia –, eu quis ser bela, não como a Bela (dessa vez não pude evitar), mas como as passistas das escolas de samba. Elas eram até parecidas comigo, o que tornava meu sonho mais próximo. Em uma época do ano, mulheres parecidas comigo eram consideradas bonitas e desejáveis para o mundo todo.

No entanto, fui criada na igreja protestante e lá a exibição do corpo era pecado. Desejar exibir o corpo também era pecado e desejar que alguém exibisse o corpo era, igualmente, pecado. Então, eu não podia ser bonita, brilhante, aparecer na TV, sambar até cair e ser desejada por gringos. Pra mim, esse era o carnaval, e eu não podia participar.

Até que eu cresci, fui rodeada por ideias feministas que diziam coisas quase opostas: "o corpo é seu, as regras são suas, exiba se quiser", mas a supervalorização do corpo da mulher a torna um objeto, e ignora sua humanidade. Isso tudo parecia confuso, e o carnaval, que nunca foi meu amigo se tornou uma festa cada vez mais distante pra mim, literalmente. Por isso, os vários retiros e dias enclausurados, longe da festa e dos corpos. Aliás, por que sair de casa no verão do Rio de Janeiro se não for para ficar à beira do mar tranquila e, de preferência, sem mais de duas mil pessoas te rodeando, pulando e suando?

Essa era minha pergunta, até que um dia eu me emocionei – bastante, diga-se de passagem – ouvindo a Alcione cantar "eu vou ficar no meio do povo espiando minha escola perdendo ou ganhando mais um carnaval". Se fosse uma ocasião isolada, eu diria que estava de TPM ou esconderia das pessoas que eu, Laíza Verçosa, já chorei ouvindo "Não deixe o samba morrer". Mas não foi só isso. O Carnaval começou a me tocar. Passei a reparar no carnaval que se passava no meio do povo espiando. Nos garis da Sapucaí com 6 segundos de fama, nas mulheres costureiras dos galpões das grandes escolas, incansáveis em tecer o brilho da festa; nas rodas de samba pré e pós-folia, aquelas às quais nunca vou porque tenho muita preguiça, mas que, quando vou, acho tudo lindo e não quero mais sair; nas mulheres instrumentistas que tocam nessas rodas trazendo pedacinhos de carnaval o ano inteiro, e que eu soube, pela minha amiga Luana do Moça Prosa,* que ainda são vistas com algum preconceito. Afinal, mulher tocando, só se for um tamborim rapidinho, com pouca roupa e muita purpurina no corpo à frente da bateria no desfile. Por que essas pessoas insistem na alegria do carnaval num país tão injusto? Por que essas mulheres costureiras não vestem o glamour de suas alegorias no dia a dia da comunidade? Por que a moça da percussão, que não está com purpurina e nem é o foco da câmera, ainda consegue superar o assédio e a piada na roda, mas toca como quem samba na cara do preconceito? Por que essa festa, que levanta a poeira que estava debaixo do tapete, ainda movimenta tanta gente que não deixa, de jeito nenhum, o samba morrer?

Quem souber, me conte. Neste carnaval, as leituras de TCC me aguardam.

*O grupo Moça prosa é um movimento de samba feminino originado das rodas de samba da Pedra do Sal, que se estabeleceu na histórica região da Praça Mauá, no Rio de Janeiro, em 2012. Trata-se da roda de samba que presta uma homenagem a todas as mulheres compositoras e intérpretes do samba. Minha amiga Luana Rodrigues toca tantan e atabaque no grupo <3.


 
 
 

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