A CRIATIVIDADE A SERVIÇO DA ALEGRIA
- Renata Sampaio
- 2 de fev. de 2017
- 3 min de leitura
Amo sua força popular e seu caráter coletivo.
Amo a sua urgência e efemeridade.
Amo a sua alegria.
Mas, principalmente, amo seu improviso e criatividade.
Sou muito emotiva, e amo muito o carnaval.

Dizem que o brasileiro improvisa sempre e não é raro vermos características ligadas a esse adjetivo associado a nossa nacionalidade. Brasileiros, principalmente os mais pobres e consequentemente negros - porque sabemos que cor e classe têm uma forte ligação por aqui - são criativos pra poderem sobreviver e ver essa criatividade associada à alegria (não só à sobrevivência) me emociona profundamente.
Quando falo de criatividade, não me refiro somente aos carnavalescos das escolas de samba, que conseguem transformar isopor em gesso, plástico em água, papel celofane em fogo, etc. Faço referência àqueles que esperam na dispersão e recolhem os materiais deixados no final do desfile para montar suas fantasias do ano que vem. Faço referência a Renato Sorriso, gari que ficou famoso sambando na limpeza pós-desfile e hoje é uma das celebridades do carnaval carioca. Também faço referência à galera que assiste o desfile do sambódromo na avenida ao lado ou numa árvore por perto, na arquibancada gratuita do valão.

Somos criativos por natureza e nos viramos com o que temos, porque temos também um instinto de sobrevivência muito grande vindo de nossos ancestrais. Porém, muitas vezes isso é usado como desculpa para nos privarem direitos, com a justificativa de que sabemos lidar bem com menos. Por exemplo, a escolha do novo prefeito do Rio de Janeiro de pôr no cargo de Secretária de Cultura uma mulher negra oriunda do universo do samba, alegando o quanto ela tem a nos ensinar sobre “fazer mais com menos”, como se sua competência não fosse motivo suficiente para sua indicação.
No carnaval, nossa inventividade aflora artisticamente, mas não é usada somente para fins festivos. Afinal, também somos nós que estamos no comércio informal, vendendo cerveja, churrasquinho, etc., inventando formas de ganhar dinheiro na festa do Momo...
Mas aqui quero dar alguns exemplos dessa criatividade que tanto me emociona:
A criatividade dos meus pais ainda namorando, virando a noite assistindo os desfiles das escolas de samba numa TV em preto e branco, colorindo em suas mentes fantasias, carros alegóricos e pessoas, e achando tudo lindo. Que livro de colorir que nada!
O fantasioso carro alegórico da minha infância, composto de uma cadeira com encosto virado pra frente, uma vassoura servindo de apoio e os vinis de samba-enredo do meu pai tocando na vitrola. Eu sambava, pulava e acenava pra minha arquibancada inventada com ursinhos de pelúcia em cima do sofá.
A criatividade da minha mãe no carnaval de 98, quando É o Tchan! bombava no Havaí, fazendo pra mim uma fantasia perfeita de havaiana com sacos de batata. Era linda! Não perdia em nada pras vendidas comercialmente.

A criatividade de todos os pais que fazem as fantasias de seus filhos e todos os adultos que fazem suas próprias fantasias com o que tem em casa.
A fecundidade das relações humanas que nascem com as fantasias, como quando meu namorado usou uma tiara na testa como se fosse uma coroa de espinhos e todos os fantasiados de diabo com que cruzávamos o caminho encenavam com ele uma guerra, muitos casais pediam sua benção e muita gente queria que ele transformasse água em cerveja!
A inventividade dos nomes de quase todo bloco de rua do Rio, fazendo referências históricas ou de localização espacial em trocadilhos maravilhosos. Largo do Machado, mas não Largo do Copo, Suvaco do Cristo, Comuna que Pariu, Virilha de Minhoca...
Criatividade é a capacidade de criar, produzir ou inventar coisas novas; é pensar de forma diferente, fora da caixinha. Por isso somos tão criativos no carnaval: porque nesse período, a lógica de funcionamento da vida é outro, é como se a vida real nos desse uma trégua por alguns dias. Criatividade é a forma pela qual driblamos o cotidiano, saímos da lógica cartesiana da rotina. Não podemos associar isso apenas a formas de sobrevivência ou a algo tão esporádico. Temos que elevar nossa criatividade a um modo de ser contínuo em busca da felicidade.
Lembro de umas senhoras se perguntando como podemos pensar em carnaval com toda essa crise que nos assola. Para transmutarmos ela, ora bolas! Imagina o que seria de nós sem o carnaval? Mas aí: imagina só a gente usando toda essa criatividade e coletividade para além do limite temporal do carnaval, a revolução que não seria?! #ficaadica